sábado, 13 de junho de 2009

CADERNO DE RECEITAS

Como informei aqui, em abril deste ano, fui um dos palestristas do 1º Festival Internacional da Leitura de Campinas - 1º FILC. O tema que discorri foi a História da Literatura Gastronômica no Brasil. Entre os vários assuntos abordados, um dos que mais despertaram a atenção dos participantes foi a história dos caderninhos de receita. Assim, divido um pouquinho destas histórias com vocês.
A história dos cadernos Ao contrário do que se pensa, os primeiros livros de receitas não surgiram em decorrência dos cadernos. Os livros vieram antes. O primeiro de que se tem notícia chama-se Auspicius Culinaris. Surgiu ainda na Idade Média e compreendia um conjunto de receitas reunidas por Auspicius, um festeiro e gourmet dos arredores de Roma, na Itália. Mas o livro de receitas tal qual o conhecemos, com ingredientes, quantidades, modos de fazer e ilustrações, foi uma invenção de chefes de cozinha das cortes reais européias, cuja preocupação era conservar as normas de fazer dos manjares para que futuros chefes de cozinha seguissem o ritmo impecável dos sabores consagrados pelas cortes. Um exemplo clássico é Le Cuisiner François (O cozinheiro francês), escrito em 1651 e que já foi editado em seu país pelo menos 69 vezes. No Brasil, os primeiros livros de receitas vieram parar aqui com a chegada da família real, em 1808. "Que trouxe ainda utensílios e alguns ingredientes de cozinha", diz a antropóloga Paula de Pinto e Silva, da Universidade de São Paulo. Aos poucos, a cultura européia da cozinha foi sendo adaptada às condições tropicais da nossa terra. Com o passar do tempo, os portugueses começaram a ensaiar combinações corajosas na culinária. Foram adaptando ao seu sabor ingredientes brasileiros. Na falta de trigo, tentaram usar a mandioca. No lugar da castanha portuguesa, incluíram a castanha de caju.
Apenas a partir do fim do século 19 surgem no Brasil os primeiros cadernos de receitas propriamente. Foi quando as mulheres passaram a ser alfabetizadas. As receitas, antes uma tradição oral, começaram então a ser anotadas. Tudo obra de avós ou mães que, ao arrumar o enxoval das filhas ou netas prestes a sair de casa, incluíam como item essencial um caderno repleto de receitas. Eles representam um legado daquilo que foi apreendido pelo gosto da família. A tal ponto de surgirem iguarias com nomes de famílias, algumas tão antigas quanto os clãs que lhes deram origem. Algumas famílias guardavam a sete chaves a receita de pratos tradicionais, que às vezes levavam o sobrenome de quem os criou É o caso do bolo Souza Leão, por exemplo, cuja fórmula foi guardada em segredo pela família homônima, de Pernambuco, por muito tempo. Sua receita - basicamente mandioca, ovos e muito açúcar - soa como um eco do passado, dos tempos em que, nas casas grandes dos engenhos de cana no Nordeste, sinhazinhas e mucamas iam preparar o doce colocando na mesma panela receitas portuguesas misturadas aos produtos da terra, como o coco e a mandioca. Em seu livro Nordeste, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre diz que essa e outras receitas demoraram a ser popularizadas. "Não só pela sua natureza complexa como pelo ciúme de sinhás donas ilustres que conservam as receitas dos velhos bolos como jóias de família", escreveu Freyre. Com o passar dos anos, e em conseqüência do troca-troca de receitas entre famílias e amigas, elas ganharam as páginas dos jornais e revistas e viraram inclusive livros. O segredo do Souza Leão passou a ser, definitivamente, conhecido pelo Brasil inteir no clássico Açúcar - Uma Sociologia do Doce, escrito por Freyre e publicado pela primeira vez em 1939. O popular livro de receitas brasileiro Dona Benta foi publicado pela primeira vez em 1940 e chegou, ano passado, a sua 76ª edição. Trata-se de uma das publicações de cozinha mais vendidas no Brasil, com cerca de mil receitas atualizadas e coletadas junto às famílias tradicionais brasileiras. Muitas das receitas de dona Hermelinda Pereira de Mello, anotadas em seu caderno a partir de 1911, foram recentemente publicadas no livro Doces Sabores, organizado por sua neta, Rosa Belluzzo, com a parceira Marina Heck. Sim, cadernos de receitas representam tudo isso: a memória culinária de nossas famílias, seus traços afetivos. São ferramentas para se observar a vida cotidiana do nosso passado e presente. Isso já faz dos escritos culinários, por si só, narrativas preciosas. "Um patrimônio", diz a antropóloga Laura Graziela. Escritas que nos permitem olhar a comida antes de ela existir e acariciar a idéia de saboreá-la.
Mas, vale dizer, a receita de um prato jamais será uma fórmula exata para se chegar ao mesmo resultado sempre. No papel, uma receita qualquer, sabemos apenas representá-la em parte. Porque na culinária, como na vida, conta muito o que não pode ser expresso em palavras: a experiência de quem cozinha, a intuição usada na hora do saber fazer, os pequenos segredos, como “quinhentos gramas de farinha, menos duas colheres. Depois, esticar a massa até ela ficar da grossura de um papelão", diz uma antiga cozinheira, se referindo ao seu truque para que a massa de um determinado rocambole jamais quebre em suas mãos. Mas isso não está na receita, não.

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